Arquivo do mês: agosto 2008

Fazendo Samba de Lapada

No mês de junho próximo passado, a cidade recebeu, numa conhecida casa da Ilha, uma cantora de samba como uma grande atração da Lapa. Por aqui a jovem cantora fez algumas apresentações acompanhada por instrumentistas nativos.

Numa entrevista de TV, ao ser perguntada sobre o que achava do samba e do choro do Maranhão, a menina sambista respondeu de bate-pronto: “…eu nem sabia que no Maranhão tinha samba e choro…”. Pois na ocasião, inspirado nas suas declarações e no seu talento de cantora, rabisquei, em clima de bom humor, próprio das rodas de samba, alguma coisa dedicada à jovem sambista carioca, que meu parceiro Chico Canhoto está incumbido de musicar. Vai aí abaixo:

CONVERSA PRA DOIS (ou Samba de Lapada)

mocinha que veio do rio
até que você é bela
mas não me convence não
no bom samba amarela
se encara a multidão

e você meu bom rapaz
(de inspiração bandida)
não me venha com mutreta
me vender samba da lapa
com cantora de opereta

tudo bem menina branca
você até que é caprichosa
nasceu no berço de bamba
seja então mais generosa
eu te peço por “favor”
não ignore meu samba

ouça aqui cabôco fino
todo metido à bacana
escute o samba do Vieira
o do Cristóvão no vinil
use o Rayban de Teixeira
e dê Alô pro Brasil

me perdoem a franqueza
deste incipiente sambista
em respeito à Noel
ao bom malandro Batista
que no samba foram à fundo
o nobre Josias me ensina
eu não tiro o chapéu
pra sambinha vagabundo.

São Luís, 5 de junho de 2008.
ricarte almeida santos

JACOB DO BANDOLIM (O ÉPOCA DE OURO, “VIBRAÇÕES”) E O CHORO MODERNO, NESTE DOMINGO NO CHORINHOS E CHORÕES

foto Instituto Jacob do Bandolim


Que Jacob do Bandolim era um sujeito genial todo mundo já sabe; que era um camarada ranzinza, preocupado com o futuro do choro, também já não é mais novidade.

Dentre as muitas histórias e episódios sobre Jacob, consta o da antipatia “gratuita” por Waldir Azevedo. Outra coisa que o mestre do bandolim implicava também era que não tolerava a palavra “regional” para designar os grupamentos chorísticos. Para ele os grupos regionais serviriam apenas para “tapar buraco nas estações de rádio.” De modo que é praticamente impossível encontrar um CD de Jacob do Bandolim com expressão Jacob e “seu Regional”, como é comum encontrar em discos de outros solistas.

Nos discos de Jacob a expressão era mais pomposa: Jacob e seu conjunto Época de Ouro. O Época de Ouro foi o conjunto que o acompanhou durante quase toda sua vida.

Para os críticos, dentre os muitos discos que Jacob e o Época de Ouro gravaram, um mereceu maior capricho e, por isso mesmo, é o de proposta mais interessante. Trata-se de Vibrações. Disco gravado em 1968, que agora recentemente foi transformado em CD, como se fosse uma coletânea comum, sem o menor cuidado com o encarte, com as informações. A capa original era uma verdadeira fonte de pesquisa, tal a preocupação de Jacob com o registro, com a história e a preservação do Choro. Na versão CD de Vibrações tudo isso foi pro beleléu.

Em Vibrações, Jacob do Bandolim, além de prenunciar, em arranjos ricamente elaborados, os caminhos modernos que o Choro tomaria, dá vazão a uma de suas maiores características como instrumentista e como compositor: o sentimento. Nenhum outro bandolinista tocou com tanta sentimentalidade quanto Jacob.

Como compositor, então, essa marca se ratifica. Suas criações beiram a palavra, ainda que sejam “meramente” instrumentais. Ouça Vibrações e sinta como só um gênio como Jacob poderia unir com tanto equilíbrio, sentimento, respeito à tradição e coragem para o moderno. Pra fim de conversa, Jacob criou uma linguagem brasileira para o bandolim, instrumento que acabou por fazer parte de seu nome. Tudo isso domingo no Chorinhos e Chorões, às 9 horas da manhã, na Rádio Universidade FM.

JURUCA, MEU MESTRE DO CHORO


foto: álbum de família

O meu mestre do Choro não foi Pixinguinha, o mais notável de todos os chorões; também não foi Jacob do Bandolim, o mais preciosista dos mestres do Choro; muito menos Waldir Azevedo, o maior cavaquinhista de todos os tempos. Também, eu não sou nenhum instrumentista de choro. Sequer arranho qualquer instrumento.

Meu mestre do Choro, assim como seu pupilo, também não tocava patavina, como ele gostava de falar. Mas foi com ele que eu aprendi a gostar de Choro. Foi ele quem me apresentou Jacob do Bandolim. Foi com meu mestre do Choro que eu conheci Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Dilermando Reis, Saraiva, Noca do Acordeom, Nelson Gonçalves, Luiz Gonzaga, Anísio Silva, Abdias, Marinês, Domingos Pecci e tantos outros mestres brasileiros da música.

Lembro, com enorme saudade e uma pontinha de orgulho, das inúmeras, incontáveis noites que adormeci ao som de “Saxofone, por que choras”, clássico do Ratinho. Nas minhas memórias de menino esse choro ficou imortalizado por Domingos Pecci, um dos saxofonistas preferidos do meu mestre. Outro choro que embalava minhas noites iluminadas à lamparina e candeeiro na pequena Santa Teresa do Paruá, foi “Lágrimas de namorados”, do já saudoso saxopranista Saraiva. O meu mestre adorava. Eu também. E ainda nem sabia.

Para acordar logo cedo, me recordo das notas e melodias de “Não me toques”, música de Zequinha de Abreu, que lá em casa se ouvia ao som do mais cristalino dos bandolins, o de Jacob e seu Conjunto Época de Ouro. Claro, em LP, tocado em radiola Philips automática, à pilha, já que em Santa Teresa, naquela época de ouro, não havia energia elétrica.

Puxava-se o braço do pequeno aparelho para trás para ligá-lo e quando o grande disco começava a rolar no prato da vitrola, colocava-se a pequena agulha de cristal sobre o vinil e iniciava-se a audição dos meus primeiros choros. Ao terminar de tocar a última faixa de um dos lados do LP, a radiolinha desligava automaticamente. Para se ouvir as faixas do lado B virava-se o disco repetia-se a operação.

Assim, lá em casa dormíamos ouvindo alguns dos mais belos choros sem a preocupação de ter que desligar o aparelho. Foi assim, dormindo e acordando, que aprendi a gostar dessa música. O Choro de vinil em radiola de pilha fez parte do meu sono, dos meus sonhos, do meu acordar cotidiano ao lado do meu mestre. Faz parte da minha vida.

Meu mestre se chamava Raimundo Natividade dos Santos. Para alguns, Raimundinho Juruca ou só Juruca. Era o meu querido Pai. Uma figura ímpar na minha vida, em todos os aspectos.
Juruca, além de grande pai, carinhoso, às vezes ríspido, portava-se, hoje posso ver, como um mestre do Choro para mim. Tratava com absoluto zelo seus LP’s.Toda vez que ia ouvi-los era um verdadeiro ritual. Desde a escolha do disco, sua retirada da capa de papel e do plástico que o revestia, até a limpeza cuidadosa com uma espécie de esponja umedecida com um líquido especial, passada repetidas vezes em movimentos circulares sobre as faces do vinil.

Demonstrava conhecimento sobre os instrumentistas e compositores. Fazia comentários sobre eles. Gostava de atribuir títulos de nobreza a alguns. Para Juruca, Jacob era “rei do bandolim”. Dilermando Reis, “o rei do violão”. Saraiva para ele era “o rei do saxoprano”. Waldir Azevedo, “o rei do cavaquinho”. E assim o Juruca, o meu mestre do Choro, ia definindo verdadeiras monarquias instrumentais, que para mim serviram como parâmetros. Ajudaram-me a perceber quem era quem no jogo dos instrumentos. Sempre tentava me convencer, e a todos, que o Choro era a nossa grande música. E eu fui acreditando nisso.

Outro costume curioso do mestre Juruca, acontecia quando aparecia alguém em sua farmácia ou em alguma roda de conversa se dizendo violonista, por exemplo. Para tirar a prova dos nove, Juruca exigia logo que o afoito tocasse “Marcha dos Marinheiros”, de Américo Jacomino, eternizada por Dilermando Reis. Para ele, uma música de difícil execução. Teste cabal para qualquer pretenso violonista. E caso contrário, o camarada estava desmoralizado como instrumentista.

Se o sujeito se dizia sanfoneiro, aí o desafio era outro. A ordem era tocar “Escadaria”, clássico do acordeon, de autoria de Pedro Raimundo. Se o dito instrumentista titubeasse frente aos degraus, pronto. Perdia a moral como acordeonista para Juruca.

E assim eu fui absorvendo essa música, cheia de beleza e de uma saudade inexplicável que eu não sabia do quê. E que agora, sem o meu mestre por perto, se explica. Eu já sei do que é aquela saudade que tem no Choro. Era a falta do meu mestre Juruca que eu já sentia antes mesmo de perdê-lo.

Se ouço “Saxofone, por que choras”, consigo ver seu rosto, cada detalhe, seu riso de dentes perfeitos de satisfação quando ouvia esse belo Choro. É o seu retrato chorístico. Esse som está emoldurado e pendurado em meu coração para sempre.

Daí também meu compromisso com o Choro, enquanto música, enquanto identidade, também como possibilidade de conquista e garantia de direitos. Portanto, a “tarefa” de difundi-lo entre os mais jovens, de partilhar com os mais pobres. Convencer também as outras pessoas que Choro é a nossa grande música. É também uma forma de me manter perto d’Ele, de diminuir a saudade que me faz triste.

Se o meu mestre do Choro fosse vivo, no próximo 8 de setembro completaria 70 anos de idade. A mim restam a saudade, os ensinamentos e o “Chorinho de Herança”.

[texto escrito por Ricarte Almeida Santos para compor um livro sobre a vida de Raimundo Juruca, que seus filhos estão escrevendo e postado aqui por ocasião da passagem do Dia dos Pais]