Arquivo do mês: fevereiro 2010

NOTA DE DESAGRAVO

As entidades e organizações abaixo relacionadas vem a público prestar irrestrita solidariedade à Comissão Pastoral da Terra – CPT e seus integrantes, diante da calúnia expressa na ação movida pelo Ministério Público, na pessoa do Promotor de Justiça da Comarca de Balsas, Sr. Rosalvo Bezerra de Lima Filho. Contrariando as prerrogativas constitucionais da finalidade do Ministério Público, o referido promotor, ao invés de cumprir seu papel de fiscal da Lei, de mediador dos direitos difusos da sociedade, preferiu criminalizar as organizações sociais e os trabalhadores/as.

A agressão contra a CPT se deu por conta de fatos ocorridos em Balsas, quando esta apenas cumpria sua missão de presença solidária, profética, ecumênica e afetiva, acompanhando as pessoas em situação de abandono. Diante das acusações infundadas e absurdas, vamos representar nos fóruns e organismos oficiais, em âmbito estadual e nacional contra o sr. Rosalvo Bezerra de Lima Filho.

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB – Regional NE V)
Cáritas Brasileira Regional Maranhão
Comissão Justiça e Paz
Fórum Carajás
Comitê de Cidadania de Pastos Bons
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI-MA)
Associação Camponesa (ACA-Balsas)
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lôreto
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Riachão
CENTRU-Maranhão
Rede de Intervenção em Políticas Públicas
Combonianos Brasil-Nordeste
Jornal Vias de Fato
Tribunal Popular do Judiciário/Observatório da Justiça e Cidadania
Redes de Fóruns de Cidadania do Maranhão
Comissão de Direitos Humanos da OAB
Sociedade Maranhense dos Direitos Humanos (SMDH)
Associação de Saúde da Periferia do Maranhão (ASP)
Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia
Movimento Sem Terra (MST – MA)
Campanha Justiça nos Trilhos
Justiça nos Trilhos
ONG Reentrâncias
Fórum Estadual de Direitos Humanos
Fórum em Defesa do Baixo Parnaíba Maranhense
Rede de Agroecologia do Maranhão – RAMA
Associação Agroecológica Tijupá
Fórum em Defesa das Populações do Cerrado Sul Maranhense
Centro dos Direitos Humanos de Barreirinhas – CDHB
Centro de Defesa e Promoção dos Direitos da Cidadania de Santa Quitéria/MA
Gabinete da Deputada Estadual Helena Barros Heluy
Gabinete do Deputado Estadual Valdinar Barros
Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil(CTB)
Fundação Maurício Grabois
Partido Comunista do Brasil/MA
Cebrapaz/Ma
DCE UFMA
União da Juventude Socialista
Comitê Assembléia Popular
Obra Pontifícia da Infância, Adolescência e Juventude Missionária.
Gabinete do Deputado Federal Domingos Dutra

Pastor contesta Projeto de Lei dos "retiros culturais"

O pastor Lyndon de Araújo Santos, da Igreja Evangélica Congregacional, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão, encaminhou carta à deputada Eliziane Gama, reconhecendo seu importante trabalho como deputada estadual, mas manifestando seu descontentamento e propondo até uma moção de repúdio ao Projeto de Lei de autoria da deputada, que “legaliza” o finaciamento público para o que ela chama de “retiros culturais”.
A carta do pastor Lyndon é objetiva, contextualizada teológica e politicamente, republicana e, diria mais, profética.
“Retiros Culturais”, foi uma nova nomeclatura que a deputada evangélica encontrou para justificar o repasse de dinheiro público para custear eventos religiosos em épocas festivas, como carnaval e o período junino. Pronto, a porteira aberta para a oficialização da compra de fiéis, especialmente, em anos eleitorais. Tudo em “nome de Deus”.

Veja a carta do pastor.

Prezada Deputada Eliziane Gama,
Antes de tudo quero expressar o meu apreço pela forma como vem se conduzindo como representante da população maranhense na Assembléia Legislativa do estado do Maranhão.
Venho, no entanto, manifestar o meu descontentamento e desacordo para com o Projeto de Lei no. 8.904, de novembro de 2008, que dispõe sobre apoio a “retiros culturais” por parte do Estado, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Em notícia publicada no jornal Estado do Maranhão, de 12/02/2010, a Governadora Roseana Sarney recebeu membros da comunidade evangélica, a fim de – não está claro na reportagem – garantir recursos para os chamados “retiros culturais”.
Expresso a minha insatisfação para com o decreto e para com esta prática. O apóstolo Paulo afirma que “todas as coisas me são lícitas, mas nem tudo me convém”. Embora os termos do decreto possam estar licitamente e legalmente escritos, escapando da possível inconstitucionalidade de um governo laico transferir recursos para credos religiosos, a atitude e a prática inserem-se no “nem tudo me convém”, especialmente na sua dimensão ética. Trata-se de um princípio que rege a ética pessoal e pública do cristão, extensiva à igreja e a representantes políticos que se auto-denominam cristãos. Como cidadão, pastor, professor e historiador, o desconforto para com esta atitude se situa na não conveniência de uma prática que se liga à cooptação política e troca de favores eleitorais. Além disso, “retiros culturais” é uma expressão que encobre e escamoteia a verdadeira estratégia que é dar dinheiro para a realização de shows evangélicos e retiros espirituais de igrejas.
Os evangélicos neste país estão sendo envergonhados e vilipendiados em sua imagem pública por conta de práticas envolvendo dinheiro, corrupção, tráfico de influência, sonegação fiscal, “oração da propina”, compra de telhados e pisos para templos, venda de votos de membros de igrejas, dentre outras denúncias.
Sendo assim, estes recursos deveriam ser devolvidos ao erário público como forma de bom testemunho e, ao mesmo tempo, abrir-se uma ampla discussão em torno do favorecimento do governo em “doar” recursos públicos para entidades (sejam religiosas ou não), em nome da “cultura”. O fato de que o governo favorecer outras religiões em nome da cultura, não justifica que os evangélicos devam fazer parte da mesma prática indevida e inconstitucional. A luta por um estado laico, sem religião oficial e sem favorecimentos a grupos religiosos, foi histórica por parte dos protestantes neste país, junto com a liberdade religiosa, o voto feminino e a alfabetização.
Infelizmente, a comunidade evangélica de São Luis não foi convocada em sua ampla maioria e representatividade para discutir tal projeto de Lei. Por isso, levanto a questão em torno dos critérios para se definir para quem ou para qual igreja os recursos devem ser dados. Há edital público para transferir tais recursos por meio de licitação pública? É assim que todo governo deve proceder pois estamos numa república laica.
Informo-lhe que levarei à minha igreja local onde sou pastor a proposta de uma moção de repúdio a esta prática, além de, oportunamente e com mais embasamento, escrever artigo em jornal da cidade discutindo esta prática, a meu ver prejudicial ao Evangelho de Jesus Cristo. Além disso, comunico-lhe que, em todas as oportunidades que tenho tido de palestras públicas tenho divulgado esta posição e conclamado os evangélicos e cidadãos a tomarem uma posição.
Afirmo, por fim, a disposição de dialogar e contribuir para o debate em torno destas e de outras questões pertinentes à cidadania, à transparência do uso dos recursos públicos e ao Reino de Deus.
Fraternalmente,
Lyndon de Araújo Santos.
Pastor da Igreja Evangélica Congregacional de São Luis.
Professor do Depto. de História da UFMA
Coordenador do Núcleo da Fraternidade Teológica Latino-Americana – FTL-MA
Membro do movimento Evangélicos pela Justiça

Wagner Cabral denuncia fraude em pesquisa eleitoral

Mais uma vez o professor Wagner Cabral, do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão, presta um grande serviço à cidadania maranhense. Ele que é sempre uma referência respeitável quando o assunto é a análise política, a compreensão da dinâmica das relações de poder no Maranhão. Tem artigos e ensaios publicados em revistas nacionais e internacionais, citado em diversas matérias e artigos como profundo conhecedor dos caminhos e descaminhos da Oligarquia Sarney e seus apaniguados, agora nos oferece mais uma preciosa contribuição.

Com sua verve de apurado e perspicaz pesquisador que é, conseguiu desmascarar uma fraude montada com a participação de alguns conhecidos blogueiros da Cidade, que acriticamente divulgaram a dita cuja da falsa pesquisa, sem os cuidados e a independência devidos, que pede o bom jornalismo.

O texto, abaixo, de Wagner Cabral coloca tudo em pratos limpos, como as coisas deveriam ser. Boa leitura:

ERRARAM A VERDADE!
A estória de uma pequena FARSA.

Wagner Cabral da Costa*

A oligarquia Sarney promoveu, mais uma vez, uma FARSA, com a divulgação de uma FALSA pesquisa para governador, com o objetivo manifesto de iludir e confundir a opinião pública, bem como de prejudicar as candidaturas de seus adversários. Esta é a síntese do que será explicado no decorrer deste artigo, caro leitor.

1. Da FARSA
Tudo começou na primeira semana de fevereiro de 2010, quando os blogs de Walter Rodrigues (04/02) e Marco d´Eça (05/02), e talvez outros mais, divulgaram uma FALSA pesquisa eleitoral acerca das eleições para o governo do Maranhão, cuja autoria foi atribuída ao Instituto Sensus.

O momento era muito propício, pois o Instituto havia acabado de divulgar a pesquisa
CNT/Sensus sobre a avaliação do governo federal e a sucessão presidencial (01/02), uma pesquisa já consolidada (está na 100a edição) e de ampla cobertura na mídia nacional. Assim, contando com a boa fé dos (e)leitores, a ARMAÇÃO noticiou que, juntamente com a pesquisa nacional, o citado Instituto também havia feito uma pesquisa sobre a sucessão no Maranhão. O objetivo era claro: anunciar o“favoritismo” de Roseana Sarney, bem como fragilizar as candidaturas adversárias.

Dos blogs, convenientemente patrocinados pelo governo do Estado, a FALSA pesquisa se
espalhou pela internet, sendo ainda reproduzida pela mídia impressa, nos jornais O Estado do Maranhão (da família Sarney) e O Imparcial (edições de domingo, 07/02).

2. Da SUSPEITA da FARSA

Na condição de quem pesquisa e acompanha o processo político-eleitoral do Maranhão há
mais de quinze anos, tão logo vi a pesquisa, procurei mais informações sobre a mesma nos sites do Instituto Sensus, da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), e, principalmente, do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão e do TSE.

Pois, conforme determina a legislação eleitoral, “a partir de 1o de janeiro de 2010, as entidades e empresas que realizarem pesquisas de opinião pública relativas às eleições ou aos candidatos, para conhecimento público, são obrigadas, para cada pesquisa” a fazer o registro no tribunal eleitoral competente, contendo informações sobre: contratante, valor da pesquisa,metodologia, período de realização e questionário aplicado, dentre outros dados; cabendo às secretarias judiciárias, “no prazo de 24 horas” contadas do registro, divulgar no sítio do tribunal eleitoral na internet (Resolução TSE no 23.190, de 16/12/2009, artigos 1o e 9o, grifos nossos).

A mesma resolução preceitua que “na divulgação dos resultados de pesquisas, atuais ou não,serão obrigatoriamente informados: o período de realização da coleta de dados; a margem de erro; o número de entrevistas; o nome da entidade ou empresa que a realizou, e, se for o caso, de quem a contratou; o número do processo de registro da pesquisa” (Art. 10, grifo nosso). Ora, a intenção de dar publicidade às pesquisas é garantir a LISURA e a TRANSPARÊNCIA das mesmas, que poderão ser conferidas e questionadas por qualquer cidadão, bem como por candidatos e partidos.

O resultado da busca foi o seguinte:
1) O site do Instituto Sensus (www.sensus.com.br) não mencionava qualquer pesquisa sobre sucessão no Maranhão, registrando apenas a pesquisa CNT/Sensus, o mesmo ocorrendo no site da CNT.

2) A pesquisa nacional CNT/Sensus foi registrada no TSE com o protocolo no 1570/2010, citado impropriamente no blog de Marco d´Eça como sendo a pesquisa do Maranhão.

3) No site do TSE, seção de Pesquisas Eleitorais (que inclui o TRE-MA), só encontrava-se registrada a pesquisa nacional CNT/Sensus, para o cargo de Presidente, disponibilizando o questionário aplicado (sem qualquer pergunta sobre as sucessões estaduais).

Do fracasso em encontrar informações sobre a pesquisa, nasceu a SUSPEITA de que a
mesma ou não teria sido registrada ou seria falsa. Em ambos os casos, ocorrem INFRAÇÃO ou CRIME ELEITORAL, ainda segundo a Resolução no 23.190 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE):

• Art. 17. A divulgação de pesquisa sem o prévio registro das informações constantes do art. 10 desta resolução sujeita os responsáveis à multa no valor de R$ 53.205,00 (cinqüenta e três mil duzentos e cinco reais) a R$ 106.410,00 (cento e seis mil quatrocentos e dez reais) (Lei no 9.504/97, art. 33, § 3°).

• Art. 18. A divulgação de pesquisa fraudulenta constitui crime, punível com detenção de 6 meses a 1 ano e multa no valor de R$ 53.205,00 (cinqüenta e três mil duzentos e cinco reais) a R$ 106.410,00 (cento e seis mil quatrocentos e dez reais) (Lei no 9.504/97, art. 33, § 4°).

Estabelecida a SUSPEITA, encaminhei por e-mail uma NOTA DE PREOCUPAÇÃO (na
sexta-feira, 05/02), expondo as razões pelas quais julgava que a pesquisa encontrava-se, no mínimo, SOB SUSPEIÇÃO. Solicitava ainda, à luz da ÉTICA POLÍTICA e da legislação, e na condição de pesquisador e CIDADÃO, que os responsáveis esclarecessem QUAIS AS FONTES que consultaram ou ouviram. Afinal, eu poderia estar enganado. Esta nota de preocupação foi publicada na edição de domingo do Jornal Pequeno (07/02), bem como em alguns blogs. Possivelmente, outras pessoas tiveram dúvidas semelhantes, manifestando-as, entretanto, de maneira reservada.

3. Da DENÚNCIA da FARSA

A transformação da SUSPEITA em CERTEZA veio quando os citados blogueiros retiraram
a pesquisa de suas páginas da internet, sem esclarecer, contudo, QUAIS AS SUAS FONTES, ou seja, sem indicar qual o registro da pesquisa na Justiça Eleitoral e onde os dados da mesma estavam disponíveis para consulta pública, visando assegurar a TRANSPARÊNCIA do processo eleitoral.

Num, a matéria foi retirada por “provavelmente” conter “erros” (em 05/02), mas o blogueiro Walter Rodrigues registrou “que os percentuais ali divulgados foram realmente apurados pelo instituto Sensus”, prometendo esclarecimentos posteriores que não foram dados. No outro blog,houve a admissão do problema, com a informação adicional de que apenas repetira informações de Walter Rodrigues. Após dar esclarecimentos no campo legal, inclusive sobre as multas (mas não sobre o crime), o blogueiro Marco d´Eça informou que teve orientação jurídica do Sistema Mirante no sentido da retirada da pesquisa, por conta do “rigor da justiça eleitoral” (08/02).

Para consolidar a CERTEZA, passei a ser alvo de ataques injustificados do blogueiro Walter Rodrigues, em sua prática usual de tentar desmerecer o interlocutor, no caso, desqualificando minha produção intelectual. Ora, pra quê os ataques se eu estava apenas, na condição de cidadão,questionando a ORIGEM e a VERACIDADE da pesquisa? Bastava responder aos questionamentos, comprovar a legalidade da pesquisa e indicar que eu estava equivocado. Mas não é possível confessar o inconfessável! Ou, no popular, a MENTIRA tem pernas curtas!

Este episódio, esta FARSA, não pode ser entendido de maneira isolada, mas sim num
contexto mais amplo. Pois, segundo indiquei no artigo “A bomba suja: crise, corrupção e violência no Maranhão contemporâneo”, a VIOLÊNCIA FÍSICA E SIMBÓLICA constitui um elemento estrutural de manutenção do poder oligárquico. Ao analisar a crise política dos últimos anos,indaguei o seguinte sobre os meios de comunicação:

E a mídia? O que se publicou nos jornais e na internet durante a “guerra de
blogs e e-mails” travada entre o Condomínio [de Jackson Lago] e o grupo
Mirante? Cyberguerra, aliás, que lembrou bastante a “guerra de telegramas”
da Greve de 1951, cujo ápice foi inventar um (inexistente) “Exército de
Libertação” com 12 mil homens armados! Qual o “jornalismo” praticado por
aqueles cuja única função foi fabricar e espalhar factóides a serviço de um
grupo ou de outro, tentando pautar o debate sem nenhum lastro ético-político?
[do livro A terceira margem do rio, p. 122].

Assim, de um lado a violência física (por exemplo, no tumulto provocado pelos “cães de guerra” no lançamento do livro Honoráveis Bandidos) e, de outro, a violência simbólica (em mais um factóide, a FARSA da pesquisa eleitoral) constituem faces da mesma moeda oligárquica, postas em ação por seus agentes espalhados nos mais diversos setores. Que o episódio sirva de ALERTA À CIDADANIA, muito mais virá…

Por isso, venho a público, perante a sociedade brasileira, DENUNCIAR mais esta FARSA
da oligarquia, ao divulgar uma FALSA pesquisa (ou não registrada), violando a legislação e cometendo INFRAÇÃO ou CRIME ELEITORAL, com o objetivo de promoção indevida de sua candidata e desqualificação dos adversários.

Espero, confiante, que o Ministério Público Eleitoral possa apurar devidamente as denúncias aqui formuladas por este cidadão comum!

E, por fim, relembro o escritor argentino Jorge Luis Borges na História Universal da
Infâmia, em que traçou a biografia de estelionatários, fraudadores, pistoleiros, piratas,falsificadores, impostores, traidores – destes personagens infames, o poeta e contista Borges costumava dizer que sempre ERRAVAM A VERDADE!

* Historiador, professor do Departamento de História / UFMA. Possui artigos, entrevistas e livros publicados sobre a história política do Maranhão. Seu último lançamento foi A terceira margem do rio: ensaios sobre a realidade do Maranhão no novo milênio (Editora da UFMA / Instituto Ekos), livro organizado em parceria com o prof. Dr. Marcelo Carneiro, resultante da colaboração nos Boletins de Conjuntura da CNBB – regional Maranhão em 2008 e 2009.

E-mail: wagner-cabral@uol.com.br. [divulgado em 10/02/2010].

O Haiti existe?

por Frei Betto

Interessados em exibir na Europa uma coleção de animais exóticos, no início do século XIX, dois franceses, os irmãos Edouard e Jules Verreaux, viajaram à África do Sul. A fotografia ainda não havia sido inventada, e a única maneira de saciar a curiosidade do público era, além do desenho e da pintura, a taxidermia, empalhar animais mortos, ou levá-los vivos aos zoológicos.

No museu da família Verreaux os visitantes apreciavam girafas, elefantes, macacos e rinocerontes. Para ela, não poderia faltar um negro. Os irmãos aplicaram a taxidermia ao cadáver de um e o expuseram, de pé, numa vitrine de Paris; tinha uma lança numa das mãos e um escudo na outra.

Ao falir o museu, os Verreaux venderam a coleção. Francesc Darder, veterinário catalão, primeiro diretor do zoológico de Barcelona, arrematou parte do acervo, incluído o africano. Em 1916, abriu seu próprio museu em Banyoles, na Espanha.

Em 1991, o médico haitiano Alphonse Arcelin visitou o Museu Darder. O negro reconheceu o negro. Pela primeira vez, aquele morto mereceu compaixão. Indignado, Arcelin pôs a boca no mundo, às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos de Barcelona. Conclamou os países africanos a sabotarem o evento. O próprio Comitê Olímpico interveio para que o cadáver fosse retirado do museu.

Terminadas as Olimpíadas, a população de Banyoles voltou ao tema. Muitos insistiam que a cidade não deveria abrir mão de uma tradicional peça de seu patrimônio cultural. Arcelin mobilizou governos de países africanos, a Organização para a Unidade Africana, e até Kofi Annam, então secretário-geral da ONU. Vendo-se em palpos de aranha, o governo Aznar decidiu devolver o morto à sua terra de origem. O negro foi descatalogado como peça de museu e, enfim, reconhecido em sua condição humana. Mereceu enterro condigno em Botswana.

Em meus tempos de revista “Realidade”, nos anos 60, escandalizou o Brasil a reportagem de capa que trazia, como título, “O Piauí existe.” Foi uma forma de chamar a atenção dos brasileiros para o mais pobre estado do Brasil, ignorado pelo poder e pela opinião públicos.

O terremoto que arruinou o Haiti nos induz à pergunta: o Haiti existe? Hoje, sim. Mas, e antes de ser arruinado pelo terremoto? Quem se importava com a miséria daquele país? Quem se perguntava por que o Brasil enviou para lá tropas a pedido da ONU? E agora, será que a catástrofe – a mais terrível que presencio ao longo da vida – é mera culpa dos desarranjos da natureza? Ou de Deus, que se mantém silencioso frente ao drama de milhares de mortos, feridos e desamparados?

Colonizado por espanhóis e franceses, o Haiti conquistou sua independência em 1804, o que lhe custou um duro castigo: os escravagistas europeus e estadunidenses o mantiveram sob bloqueio comercial durante 60 anos.

Na segunda metade do século XIX e início do XX, o Haiti teve 20 governantes, dos quais 16 foram depostos ou assassinados.

De 1915 a 1934 os EUA ocuparam o Haiti. Em 1957, o médico François Duvalier, conhecido como Papa Doc, elegeu-se presidente, instalou uma cruel ditadura apoiada pelos tonton macoutes (bichos-papões) e pelos EUA. A partir de 1964, tornou-se presidente vitalício… Ao morrer em 1971, foi sucedido por seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que governou até 1986, quando se refugiou na França.

O Haiti foi invadido pela França em 1869; pela Espanha em 1871; pela Inglaterra em 1877; pelos EUA em 1914 e em 1915, permanecendo até 1934; pelos EUA, de novo, em 1969.

As primeiras eleições democráticas ocorreram em 1990; elegeu-se o padre Jean-Bertrand Aristide, cujo governo foi decepcionante. Deposto em 1991 pelos militares, refugiou-se nos EUA. Retornou ao poder em 1994 e, em 2004, acusado de corrupção e conivência com Washington, exilou-se na África do Sul. Embora presidido hoje por René Préval, o Haiti é mantido sob intervenção da ONU e agora ocupado, de fato, por tropas usamericanas.

Para o Ocidente “civilizado e cristão”, o Haiti sempre foi um negro inerte na vitrine, empalhado em sua própria miséria. Por isso, a mídia do branco exibe, pela primeira vez, os corpos destroçados pelo terremoto. Ninguém viu, por TV ou fotos, algo semelhante na Nova Orleans destruída pelo furacão ou no Iraque atingido pelas bombas. Nem mesmo após a passagem do tsunami na Indonésia.

Agora, o Haiti pesa em nossa consciência, fere nossa sensibilidade, arranca-nos lágrimas de compaixão, desafia a nossa impotência. Porque sabemos que se arruinou, não apenas por causa do terremoto, mas sobretudo pelo descaso de nossa dessolidariedade.

Outros países sofrem abalos sísmicos e nem por isso destroços e vítimas são tantos. Ao Haiti enviamos “missões de paz”, tropas de intervenção, ajudas humanitárias; jamais projetos de desenvolvimento sustentável.

Findas as ações emergenciais, quem haverá de reconhecer o Haiti como nação soberana, independente, com direito à sua autodeterminação? Quem abraçará o exemplo da dra. Zilda Arns, de ensinar o povo a ser sujeito multiplicador e emancipador de sua própria história?

[fotos de Ricarte Almeida Santos, 2006]